O atraso à frente do progresso
Com expansão das carvoarias, Piauí deixou de ser apenas exportador para se destacar também como um dos principais exploradores do trabalho escravo
Lúcio LambranhoEnviado especial a Corrente (PI) e Avelino Lopes (PI)
O drama ainda vivo dos catadores de feijão piauienses revelado na série de reportagens iniciada anteontem pelo Congresso em Foco (leia mais) está longe de ser um caso isolado de trabalho escravo ou de jornadas em condições degradantes nas áreas rurais no sul do Piauí.
Por ironia do destino, Corrente (PI), nome da cidade onde vive a maioria das vítimas do acidente que matou 14 pessoas, ganha por lá um aumentativo e vira correntão (foto abaixo), peça usada para devastar milhares de hectares de cerrado na região e colocar trabalhadores em situação muito próxima da escravidão nas carvoarias.
Há pelo menos quatro anos, segundo entidades que combatem o trabalho escravo na região, a expansão da fronteira agrícola deu contornos mais trágicos à exploração da mão-de-obra rural no Piauí. Desde então, o estado começou a registrar a ocorrência de trabalho escravo em seu território em vez de ser “apenas” uma das regiões onde mais se alicia pessoas Brasil afora.
Grande parte do problema se dá nas carvoarias, a primeira atividade econômica dessa expansão. Primeiro, os empreendedores, principalmente vindos do sul do país, derrubam a mata em até em 80% das propriedades, como manda a legislação. Depois, o cerrado vira pastagens ou lavouras de soja ou feijão.
Dados do escritório no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram que o Piauí foi, entre 2003 e 2007, o sexto estado brasileiro no ranking de trabalhadores aliciados para o trabalho escravo. Nesse período, foram libertadas 743 pessoas ante as 3.347 liberadas com domicílio no vizinho Maranhão, campeão na preferência dos "gatos", como são apelidados os aliciadores de mão-de-obra escrava.
As informações são apuradas a partir do preenchimento pelos trabalhadores da ficha de seguro-desemprego, direito relativo a três meses de salário que eles recebem ao deixarem as condições análogas à escravidão.
De exportador a explorador
Na outra ponta do problema, o Piauí também ocupa o sexto lugar entre os estados onde mais são encontrados trabalhadores cativos. De 2003 a 2007, foram libertados em território piauiense 195 pessoas, inclusive em carvoarias como a mostrada na foto abaixo, onde o Congresso em Foco esteve em Corrente.
"O setor de carvoaria está em transformação, de cinco anos para cá, com a terceirização da mão de obra, uma estratégia usada para burlar a fiscalização. Isso faz parte da expansão da fronteira agrícola no cerrado do Piauí", explica a coordenadora de combate ao trabalho escravo da OIT, Andrea Bolzon.
Em janeiro deste ano, a Delegacia Regional do Trabalho (DRT) no Piauí divulgou outro dado alarmante. Entre 2006 e 2007, houve um crescimento de 142% no número de denúncias de trabalho escravo no estado. Segundo a DRT, a falta de conhecimento dos trabalhadores em relação aos seus direitos quando saem para trabalhar é uma das principais causas do problema.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Piauí, os aliciados para trabalhar em condições degradantes fora do estado têm entre 18 e 35 anos. A maioria não concluiu nem mesmo a 4ª série do ensino fundamental. A entidade ligada à Igreja Católica contabiliza, entre 2004 e 2007, 11 casos de ocorrências de trabalho escravo no estado. Essas ações conseguiram libertar 401 trabalhadores nesse período.
"Temos prefeitos no Piauí que pagam até o ônibus para quem quiser trabalhar em péssimas condições fora do estado. É negócio para eles, que se livram do problema e não precisam fazer nada para gerar emprego e renda", denuncia a coordenadora de Combate ao Trabalho Escravo da CPT no Piauí, Joana Lúcia Feitosa Neta.
E mesmo com um programa estadual de erradicação do trabalho escravo e o envolvimento de várias entidades, a solução do problema ainda pode estar longe, segundo a representante da CPT. "O combate ao trabalho escravo ainda é lento e ineficiente, pois o estado não consegue alternativas de renda. O trabalhador continua sem saída no Piauí", ressalta Joana Lúcia.
O drama das carvoarias que agora ganha força no Piauí, sobretudo em cidades como Avelino Lopes, vizinha de Corrente, onde um hectare de terra pode ser comprado por R$ 50, como atestou com várias fontes a reportagem, é cada vez mais forte.
"Os nativos não têm o que fazer com as terras e vendem a preço de banana. Aí vêm os sulistas com dinheiro e só aumentam os projetos de carvão", disse um comerciante da cidade que preferiu não se identificar. É que ele tem, entre seus clientes mais fiéis, gente do sul, principalmente gaúchos. "Em breve, ninguém vai conseguir nenhum canto para criar seu gado e para pequena produção", completa o comerciante.
Pelos dados da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí (Fetag), o trabalho nas carvoarias motivou 90% das ações fiscais e apreensões durante todo o ano passado. Foram 156 trabalhadores, segundo a Fetag, resgatados dessas carvoarias contra 46 pessoas libertadas do setor de grãos.
"O Piauí vai virar fumaça"
A venda de terras por preços baixos na região para a criação de carvoarias é incentivada pela legislação. É no que acredita o procurador-geral do Ministério Público do Trabalho (MPT) no Piauí, Luzardo Soares.
Segundo o procurador do MPT, a lei ambiental quase que obriga o proprietário rural a desmatar 80% das fazendas e se livrar da mata. E como os índices de produtividade estão, segundo ele, cada vez mais difíceis de serem cumpridos em várias regiões do país, ter uma propriedade rural ficou muito caro para os pequenos e médios produtores. É que, quanto menor a produtividade, explica Soares, maior é o valor do Imposto Territorial Rural.
"Por isso, os produtores são obrigados a vender barato suas terras e os novos donos são estimulados a desmatar sem pensar nas alternativas do manejo sustentável. Em pouco tempo, o Piauí vai virar fumaça", avisa o procurador.
Segundo Soares, o uso dos correntões para o desmate não respeita a biodiversidade, principalmente no Piauí, estado com o maior número de parques nacionais. "Parques como o da Serra da Capivara estão ameaçados, pois estão dentro dessa área de expansão agrícola", diz.
O procurador também confirma a informação de que os trabalhadores das carvoarias são submetidos a péssimas condições de trabalho. "Trabalho escravo pode até ocorrer em alguns casos, mas as condições degradantes estão sempre presentes", afirma.
O carvão vegetal, como o transportado nesse caminhão (foto acima) quase sempre acima do peso permitido, flagrado pelo site, é a base das siderúrgicas. Como mostrou o Congresso em Foco, entre as oito empresas e cinco pessoas físicas acusadas de manter trabalhadores em situação análoga à de escravo incluídas na última edição da chamada "lista suja" (leia mais), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), duas doaram para campanhas de políticos eleitos em 2006.
O principal beneficiário da contribuição dessas empresas foi o governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), um dos principais nomes lembrados pelos tucanos para concorrer à sucessão de Lula em 2010.
De acordo com a prestação de contas registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o governador mineiro recebeu em sua vitoriosa campanha à reeleição R$ 33,4 mil da Calsete Siderurgia, incluída na última “lista suja”, divulgada no final do ano passado.
Entre os dias 18 e 25 de maio de 2006 – antes, portanto, da doação ao comitê eleitoral de Aécio Neves –, 45 trabalhadores foram libertados pelos fiscais em uma fazenda administrada pela siderúrgica mineira no município de Formosa do Rio Preto, oeste da Bahia.
O Congresso em Foco revelou o drama dos catadores de feijão do Piauí numa série de reportagens especiais (leia a lista abaixo) que chega hoje ao fim. Mas não abandonará o seu compromisso de continuar acompanhando, no Congresso, a tramitação de propostas que tratam do trabalho escravo. Esforço que começou em janeiro de 2007, quando publicamos a primeira lista de políticos beneficiados por doações de campanha de empresas incluídas na chamada "lista suja" do MTE.
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